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“O verdadeiro herói, o verdadeiro objecto, o centro da “Ilíada”, é a força. A força que é manipulada pelos homens, a força que submete os homens, a força perante a qual a carne dos homens se retrai. Nela a alma humana surge incessantemente alterada pelas suas relações com a força; arrastada, ceifada pela força da qual julga dispor, curvada sob o constrangimento da força que suporta. Aqueles que sonharam que a força, graças ao progresso, pertencia ao passado, puderam ver neste poema um documento; aqueles que sabem discernir a força, hoje como outrora, no centro de qualquer história humana, lá encontram o mais belo, o mais puro dos espelhos.

A força — é o que torna quem lhe é submetido numa coisa. Quando é exercida até ao extremo, faz do homem uma coisa no sentido mais literal, porque faz dele um cadáver. Havia alguém e, num instante, não há ninguém. É um quadro que a “Ilíada” não se cansa de nos apresentar. (…)

Apesar da curta embriaguez causada durante o Renascimento pela descoberta da literatura grega, o génio da Grécia não ressuscitou nestes vinte séculos. Algo dele surge em , em , em , em , e uma vez em . A miséria humana é posta a nu, a propósito do amor, na “École de femmes”, no “Fedro” [sic]; estranho século aliás, em que, ao contrário dos tempos épicos, só era permitido descobrir a miséria do homem no amor, enquanto que os efeitos da força na guerra e na política tinham de estar sempre envoltos em glória. Podíamos talvez citar mais alguns nomes. Mas nada daquilo que produziram os povos da Europa vale o primeiro poema conhecido que apareceu num deles. Talvez reencontrem o génio épico quando quiserem acreditar que nada está ao abrigo do destino, nunca admirar a força, não odiar os inimigos e não desprezar os infelizes. Duvidamos que seja para breve.”

Simone Weil, “A Ilíada, ou o Poema da Força”

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